Conhecendo World Heroes em 2024
Por Fabio Pereira
Pra quê jogar World Heroes agora? Talvez você esteja fazendo essa pergunta... Qual a relevância dessa franquia obscura, lançada originalmente para o Neo Geo MVS, comparado aos clássicos do mesmo ano de 1992, como Street Fighter II Turbo: Hyper Fighting e Art of Fighting? Não vou esconder que existe um enviesamento pessoal ao escolher esse como o jogo tema do episódio 6 do podcast, mas é uma iniciativa motivada pela curiosidade. Quando frequentava as locadoras de videogame, via esse jogo de Super Nintendo na prateleira, que não parecia ser ótimo, mas era uma novidade que seguia os rastros de Street Fighter. E quando vi o port de Super Nintendo rodando nas mãos de outro jogador, achei sensacional, pois os gráficos eram lindos e os personagens muito legais. Pelo menos era o que eu, como criança, achava, e, sem experiência pra julgar, e ainda menos dinheiro pra poder experimentar, fiquei com a imagem de uma gema oculta que eu deveria jogar em algum momento. Esse momento chegou e vim a descobrir que gemas só viram joias depois de muito polimento. Antes disso, é só uma pedra colorida. A definição que mais se encaixa com o primeiro World Heroes, é que ele é um jogo finalizado. É tecnicamente competente em todos os seus aspectos, mas não se destaca em nenhum deles. Mas antes de discutir cada ponto individualmente, acho importante falar sobre a estória do jogo, que é diretamente funcional à sua direção de arte.
- Jenghis Carn: fundador do império mongol Gengis Khan (1162 - 1227)
- Jeanne D'arc: santa e heroína francesa homônima (1412 - 1431);
- Hanzo Hattori: lendário samurai japonês homônimo (1542 - 1597);
- Fuuma Kotaro: rival e assassino de Hanzo, Kazama Kotaro (? - 1603);
- Rasputin: líder espiritual russo Grigori Rasputin (1869 - 1916);
- Brocken: integrantes do exército nazista;
- Dragon: ator e lutador chinês Bruce Lee (1940 - 1973);
- Muscle Power: wrestler americano Hulk Hogan (1953).
Tantas referências distintas formam um elenco muito diverso, que tem níveis de originalidade variados. Hanzo e Fuuma são como Ryu e Ken, compartilhando seu estilo de luta e aparência ninja, cada um com sua cor principal e penteado ousado, típico visual voltado para o jovem rebelde dos anos 90. Rasputin tem uma barba como a sua contraparte real, usa um roupão verde e dourado e é capaz de projetar pés e mãos gigantes, como um sapo em Battletoads. É um dos personagens mais originais do jogo, quase um proto Darkstalker perdido. Jeanne D'arc precedeu Charlotte, de Samurai Shodown, com seu visual de guerreira loira com armadura e espada. Jenghis Carn é o único personagem de jogos de luta da Mongólia que me vem à memória, com um visual inspirado em um guerreiro tradicional do país. Mas daí temos o caso de Dragon, que é mais uma das inúmeras homenagens a Bruce Lee, e Muscle Power, que é uma representação direta de Hulk Hogan. Brocken à primeira vista é uma fusão entre M. Bison e Dhalsim de Street Fighter II, e me surpreende a Capcom não ter buscado um processo por plágio contra a ADK, empresa que desenvolveu o jogo. Não temos aqui exemplos de carisma, mas propostas objetivas de design de personagem.
Considerando que estamos avaliando a versão original de arcade, os cenários são muito bonitos e coloridos, e transmitem uma atmosfera convincente do local que representam, sempre com algum tipo de movimento, e bastante movimento em alguns casos. Existe uma dificuldade de situar temporalmente o jogo, pois alguns cenários remetem à epoca de onde o personagem origina, e em outros o contexto parece não existir. Enquanto Jenghis Karn tem seu cenário em uma tradicional tenda do exército mongol, cercado por cavalos e soldados, Jeanne D'arc luta em um circo que tem características impossíveis de existir em sua época, como lâmpadas elétricas. Mas apenas dois cenários merecem ressalvas verdadeiras. Um deles é o de Fuuma, que fica em um mirante voltado para o monte Fuji, que, apesar de tomado por macacos fazendo estripulias, parece vazio. E o outro é o da batalha contra o chefe final Gee Gus, que é surpreendente quando visto da primeira vez, pela mudança drástica de ambiente, que vai para a órbita da Terra. O visual limpo e futurista do interior da nave deve ter sido proposital, mas poderiam haver variações na vista da cabine, como a mudança na perspectiva da Terra, a passagem de meteoritos ou o cintilar de estrelas.
Toda essa mistura histórica de passado estilizado, presente defasado e futuro improvável deveria resultar em uma direção de arte, no mínimo, caótica. Mas o resultado final é bem menos pior do que se pode imaginar, ao ponto de o jogo ter um certo charme brega, como um bootleg produzido por uma equipe talentosa. Percebe-se que para um próximo jogo ser visualmente melhor, não é uma questão de competência, mas experiência.
Os sons do jogo são funcionais. As vozes dos personagens são nítidas e distintas, com algumas escolhas duvidosas. Alguns golpes de Brocken são anunciados com uma voz que claramente é do narrador, pois quando ele é nocauteado, sua voz é completamente diferente. O grito shaolin de Dragon pode se tornar irritante, por seu tom agudo e repetição constante. E Muscle Power tem uma voz estúpida. É interessante como a torcida chama o nome do lutador quando este é tonteado ou durante a tela de continue. As músicas seguem o mesmo padrão de funcionalidade, com alguns temas interessantes, mas que não se comparam com os de Street Fighter II.
A jogabilidade é semelhante à de Fatal Fury, com um botão de soco, um de chute e outro para agarrar. A intensidade dos golpes varia de acordo com o tempo de pressão nos botões, sendo que com um toque rápido saem ataques fracos, e com um toque mais prolongado saem os ataques fortes, inclusive para ataques especiais. Surpreendentemente, nesse jogo esse sistema funciona muito bem, com as intensidades saindo de acordo com o comando na maior parte das vezes. Enquanto os normais e normais de comando funcionam bem, os ataques especiais são mais difíceis de executar, pois aparentemente a margem de erro nos comandos e no tempo é muito pequena. Movimentos circulares saem com facilidade, e carregamentos de trás para frente também, mas movimentos do tipo shoryuken são mais difíceis de acertar, e, juro por Hideo Kojima, não consegui executar qualquer um dos movimentos de carregamento para baixo. Pode ser falta de habilidade de minha parte, mas não conseguir executar sequer uma vez, nem que por acidente, pode indicar que algo está errado.
Existem diferenças muito grandes na jogabilidade de cada personagem, o que cria match-ups muito distintos, que exigem novas estratégias constantemente, tornando o combate variado e interessante. Mas existe o caso de Dragon, que joga seu próprio jogo, de tão quebrado. Além dos normais super velozes e com enorme alcance, ele tem um golpe especial com hitbox absurda, o Hundred Blows, em que, apertando rapidamente o botão de soco, o personagem lança vários socos continuamente, semelhante ao Lightning Kick de Chun-li. Como demonstração da atrocidade desse golpe, um dos estágios bônus do jogo consiste em esculpir uma pedra com socos e chutes para tranformá-la em uma estátua. Qualquer personagem toma, pelo menos, 25 dos 30 segundos disponíveis pra finalizar a tarefa. Dragon, usando esse golpe, resolve em 3 segundos! Sequer ele precisa se abaixar pra quebrar a parte de baixo da pedra, porque o golpe atinge em todas as alturas. Ou seja, se Dragon o encurralar no canto do estágio e começar a usar esse golpe, a única saída é esperar ele mudar de estratégia pra tentar um contra ataque, pois não há como desarmá-lo com uma rasteira e não há como pular por cima dele sem ser atingido. Se você receber um ataque desse em cheio, perde cerca de 75% de sua vida, e, se defender, ainda vai ter que lidar com chip damage. Junte isso com seu outro ataque de nome super criativo, o Dragon Kick, cuja execução é igual à do Flash Kick, de Guile, que tem start-up praticamente nulo, e alcança toda a tela. Pelo menos é facilmente punível quando erra.
Outra característica que pode tornar o combate frustrante é a aparente aleatoriedade do dano causado. É comum que seja preciso acertar uma grande quantidade de ataques em seu oponente para lhe infligir um dano significativo, mas ele pode consumir sua barra de vida em poucos golpes. Parece também que algumas situações ofensivas tem seu dano escalonado, principalmente os contra-ataques. A inteligência artificial dos oponentes é extremamente primitiva, e só representa uma ameaça porque eventualmente faz leitura de seus comandos e seu dano costuma ser maior em sua aleroriedade. Alguns personagens são extremamente previsíveis, como Fuuma, que usa seu DP e seu projétil no vazio repetidamente, como um jogador iniciante que acabou de aprender a usar golpes especiais. Ou Dragon, que tenta um ataque aéreo atrás do outro mesmo que seja punido todas as vezes (e ainda bem que ele faz isso, ou seria impossível derrotá-lo). Já Hanzo e Jeanne costumam gerar combates acirrados e divertidos. Rasputin, Brocken e Muscle Power têm lutas mais metódicas e compassadas. E Jenghis Karn é forte, mas não é bom, o que o faz parecer um adversário que não sabe bem o que está fazendo, mas que de alguma forma consegue tirar o bacon do meio da farofa na hora certa.
O chefe final é tolo em sua concepção e forma. Gee Gus tem um nome tão ridículo quanto a sua origem: um cientista, provavelmente tão brasileiro quanto Dr. Brown Sugar, decidiu enviar do futuro seu androide para enfrentar o vencedor do torneio dos anos 90, e provar que é melhor que todos juntos. Esse androide é uma mistura de T-1000 com Cho Aniki e Shang Tsung, que, usando da maleabilidade do metal líquido que compõe o seu corpo de Mr. Universo, se transforma em qualquer outro lutador do jogo. O feiticeiro de Mortal Kombat era melhor nisso, pois combinava o máximo das suas próprias habilidades com as técnicas mais avançadas dos outros combatentes em um timing perfeito, pra fazer sua vida infeliz. Gee Gus copia os outros lutadores tão perfeitamente, que traz consigo todas as suas falhas, o que é um problema de estrutura para o jogo e para a sua narrativa. Para vencê-lo, basta usar a exata mesma estratégia aplicada no lutador original, tornando a dificuldade mais uma questão de sorte que habilidade. E, afinal, se ele quer provar que é o mais forte do universo, por que copiar os movimentos dos lutadores que ele considera fracos? Pelo menos, em defesa dele, se eu tivesse a capacidade de modelar meu corpo da forma que quisesse, faria um todo trincado igual, e ainda comprimiria freneticamente os músculos peitorais ao comemorar a vitória do mesmo jeito.
Além do modo arcade, existe o modo Deathmatch, que nada tem a ver com o que hoje entendemos por este modo. Se o seu "e se..." não tem limites, provavelmente você já teve uma ideia assim: e se, no meio do estágio, houvessem minas terrestres e poças de óleo, rodeada por paredes de fogo, cercas elétricas e muros cheios de espetos? Realmente uma batalha mortal... É divertido no começo, e logo se torna um abuso ao encurralar os inimigos no canto do ringue e pressioná-los repetidamente contra as armadilhas. Talvez um dos primeiros jogos a usar um cenário que interage com o combate, que até hoje existe em jogos como Street Fighter 6, no seu modo extreme battle.
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